sábado, 18 de julho de 2015

O Tesouro Romano de Lameira Larga, Filomena Barata

O Tesouro Romano de Lameira Larga

Publicado em:

O Tesouro da Lameira Larga, Penamacor Revista “Ebvrobriga”, IX, Fundão, 2018
Filomena Barata

Este artigo pretende retomar e actualizar o estudo por mim publicado em 1995 na «Revista de Arqueologia», nº 169, Madrid, tanto mais que após a sua edição o mesmo foi objecto de nova análise pelo investigador José Cardim Ribeiro, publicado no catálogo da exposição «Religiões da Lusitânia», Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa 2002.

O Tesouro de Lameira Larga, parcialmente adquirido pelo Estado Português, procede de uma sepultura romana. No primeiro artigo publicado em 1909 por Santos Rocha no Archeologo Português, XIV (pp: 44-49), era transcrita a carta do descobridor e as condições em que se encontrou o Tesouro, designadamente  «Os objectos estava dentro de uma caixa de chumbo (...) que estava dentro de uma escavação na rocha aberta ... » e coberta com três vigas de ferro sobre as quais havia telhas e tijolos.

Através da descrição não é fácil identificar e caracterizar a tipologia do enterramento a que pertenciam os objectos, o que impede a contextualização do achado, tanto mais que não há conhecimento da existência de outras sepulturas nas proximidades. É muito plausível que se tratasse, contudo, de uma sepultura de incineração.

Também não é fácil definir o estatuto do defundo, uma vez que é comum a existência de depósitos funerários no Alto Império com conjuntos de objectos desta tipologia. Não obstante a qualidade e riqueza das peças indicia um poder económico que só cidadãos com algum protagonismo social poderiam menifestar (sacerdote? magistrado? militar?).

Na altura da publicação de Santos Rocha, o tesouro era constituído por dez objectos, cinco metálicos, três vítreos e dois cerâmicos, pertencentes a um particular. Nessa nota eram descritos sumariamente cada um deles e publicadas as suas fotografias.

Da peça então descrita com o nº 3, desconhece-se actualmente o paradeiro. Pela descrição de Santos Rocha, cremos que se trataria também de uma pátera que apresentava uma marca gravada M:N:S.

A lucerna que pertencia a este depósito funerário encontra-se no Museu de Castelo Branco e foi objecto de anteriores publicações , designadamente de Salete da Ponte e M. Leitão,  e J. A. Ferreira de Almeida, 1953, «Introdução aos Estudo das Luvernas Romanas em Portugal», O Arqueólogo Português, Série 2, 2, Lisboa.

O resto do conjunto encontra-se no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, a quem agradecemos o acesso ao acervo deste «tesouro».

A Pátera




Pretendemos aqui não fazer um estudo exaustivo de todas as peças, mas contextualizar a pátera relevada no conjunto funerário que integrava, uma vez que se trata de uma peça de grande qualidade no contexto da ourivesaria romana no actual território português.De forma circular, logeiramente côncava, esta pátera de prata, formada por dois elementos soldados entre si - o anverso e o reverso - revestida em algumas zonas com folha de ouro, e deve ter sido fabricada a partir de um molde. Mede 17 cm de altura e tem 13,2 cm de diâmetro e pesa 206,5 g.

O reverso da peça, convexo, constitui um elemento distintivo. Apenas está decorada ao centro com três círculos concêntricos em relevo. A base é anular, com secção rectangular.

O relevo do interior é uma cena mitológica de origem grega: Perseu matando a Medusa, uma das três Górgonas, a que era mortal. A representação do tema adapta-se totalmente à forma circular da peça, cobrindo-a na íntegra.

Três personagens dominam a composição: Perseu que ocupa o lugar central, de espada empunhada e na direcção das Górgonas; Atena (Minerva), do lado esquerdo, e Hermes (Mercúrio), do lado direito.

Também deste lado, mas num lugar de menos destaque, estão representadas as três Górgonas, merecendo uma delas apenas uma representação muito ténue.

Os atributos dos deuses Atena e Mercúrio estão disseminados pela peça, situando-se, contudo, no lado correspondente de cada uma delas.

Uma oliveira, simbolizando a paz, estende-se no lado esquerdo, por trás de Atena, coroado por uma coruja, ave consagrada à deusa e símbolo da sabedoria e da razão. Esta ave assume também, deste ponto de vista simbólico, o papel antagónico das forças do mal, materializado nas serpentes que nascem da cabeça das Górgonas, se bem que haja quem defenda que, tal como acontece com Eva, esses répteis não representem apenas as forças malditas e a líbido, mas também o Saber, a Sabedoria e a vitalidade cósmica e primordial e por isso são condenados. Sem entrar em delongas, refira-se apenas que a própria Atena, deusa da ciência, continua a ter nas mãos e no seu peito a serpente e que Esculápio a tem como atributo, motivo, aliás, porque ainda hoje é o símbolo da medicina.

A oliveira que sugere a árvore que a deusa oferecera, como contam alguns dos mitos, como presente à cidade de Atenas, quando da sua fundação, pois Atena para além de ter podido dar origem ao nome da cidade (ou ter a cidade adoptado a deusa como sua patrona, como sugerem outras interpretações)  é também sómbolo da vitalidade da pólis, e protectora dos seus produtos agrícolas mais importantes, designadamente o azeite.

Diz a mitologia que a oliveira se tornou na imagem de renovação para os gregos, especialmente depois da guerra com os persas, quando a antiga oliveira sagrada da acrópole, saqueada e incendiada pelos inimigos, voltou a brotar.



Pátera da Lameira Larga. Detalhe com as principais personagens que interferem no mito: Atena, Perseu, Hermes e as Górgonas. São visíveis vários elementos e atributos como o caduceu, o saco com a cabeça de Medusa e o escudo/espelho.

Por sua vez a coruja  que simboliza a clarividência, a reflexão que domina as trevas, é o símbolo do conhecimento racional e atributo de Atena.

Deusa paralemente pacificadora e guerreira, protectora da agricultura e dos artesãos, principalmente os armeiros, Atena aparece-nos com os atributos que lhe são específicos: a lança, a égide e o escudo. É uma das personagens coadjuvantes do mito na luta contra as forças malignas das Górgonas. O seu escudo/espelho permite-lhe reflectir a Medusa a quem Perseu matará sem ter que a encarar, pois olhá-la petreficá-lo-ia. Atena é aqui a personagem activa do mito que ao mesmo tempo se converte num atributo da deusa que é representada, muitas vezes, com um escudo sobre o qual está depositada a cabeça decapitada de Medusa.

A Medusa, esse monstro que tem o poder de transformar em pedra todos aqueles que a olham directamente, fazia parte das Górgonas, que, mitologia grega tardia, referia a existência de três : Medusa, Esteno e Euríale. Ao contrário das outras duas, Medusa era mortal e, por isso, foi decapitada por Perseu. Este utilizou a sua cabeça como arma que ofereceria à deusa Atena, motivo pelo que aparece representada no seu escudo. Também por esse mesmo motivo, a imagem da cabeça da Medusa aparece nos amuletos.


Num mosaico aparecido em Alter do Chão, está representada a Medusa, ao centro de um escudo, circundado por folhas de louro.





Mas o valor apotropaico da Medusa ultrapassa o âmbito estritamente bélico, de tal forma que, embora mantendo o seu lugar primordial em couraças e escudos, passa a marcar presença em lugares públicos, para os proteger.

Assim torna-se comum a representação da cabeça de Medusa em alguns clipei que fazem parte da ornamentação dos edifícios públicos romanos dos séculos I-II, como sucede nos fora de Mérida e de Tarragona.

Estes clipei têm um poder de amparo, protegendo os lugares das forças malignas e aparecem associados ao poder imperial divinizado, porque o escudo é, no fundo, uma representação do Universo de que o guerreiro se serve para opor o cosmos à força do inimigo.


Clipeus de Júpiter Ammon (Forum municipal de Augusta Emerita).
Fotografia de José Manuel Jérez Linde

Conhecido é o escudo de Aquiles: « Hefesto cria nele uma decoração múltipla, fruto dos seus sábios pensamentos. Desenha nele a terra, o céu e o mar, o Sol infatigável e a Lua Cheia, bem como todos os astros que coroam o céu ... Desenha nele também duas cidades humanas, duas belas cidades. Numa delas veêm-se umas núpcias, uns festins ... Em volta da outra cidade acampam dois exércitos, cujos guerreiros brilham sob as suas armaduras. Os atacantes hesitam entre duas decisões: a destruição da cidade inteira, ou a partilha de todas as riquezas que a agradável cidade guarda dentro dos seus muros ... ». (A Ilíada, 18, v. 478-492; 508-512). Mas para além de campos, de vinhedos, de animais de pastagem, também coloca a «força poderosa do rio Oceano, no bordo do sólido escudo».

Também nos navios, para sua protecção, é comum aparecer representada.



Cabeça de Medusa, montagem de bronze dos navios Nemi construídos por Calígula no Lago Nemi.
Imagem a partir de: http://followinghadrian.wordpress.com/2013/07/29/picture-of-the-day-head-of-medusa-bronze-fitting-of-the-nemi-ships-built-by-caligula-at-lake-nemi/[/caption]



Mas regressando às representações da Medusa, também em Roma foi encontrada uma placa de vidro com a representação da sua cabeça, datada dos séculos I-II.

A utilidade desta peça é desconhecida, mas possivelmente tinha uma função decorativa - mobiliário? paredes? - e poderia desempenhar essa função de amparo, ou seja, apotropaica.

Também como elemento de protecção surge associada ao imperador Augusto, representada num camafeu hoje pertencente ao acerco do British Museum.
Camafeu com representação de Augusto e Medusa associada. British Museu. Imagem a partir de «British Museum»:
https://www.facebook.com/britishmuseum/photos/a.418481824722.188981.72228529722/10152612797224723/?type=1&theater

Por outro lado, o escudo/espelho tem no Mundo Antigo uma dupla função: a utilização guerreira imediata e o uso como objecto fetiche. Segundo Plínio, o termo clipeus com que se denomina o escudo "tem uma etimologia de valor guerreiro: reproduzir no escudo o rosto daquele que o tinha utilizado" e fazer-se acompanhar por ele no campo de batalha facilitaria a vitória e conduziria à "imortalidade". Para atestar o testemunho deste autor, basta verificar que os escudos do tipo dos que usaram para combater na guerra de Tróia tinham retratos na parte central.

Os signa romanos tinham também efígies clipeadas com essa função, pois introduzir uma imagem numa figura geométrica circular era heroicizá-la. A isso se deve, muito provavelmente, a própria forma de muitas páteras com representações mitológicas.

Num mosaico pompeiano, cópia de uma pintura helenística que reproduzia a batalha de Alexandre contra Dário, está representado um soldado que tem um escudo no qual espelha uma imagem, muito provavelmente do próprio guerreiro. Este jogo de espelho tem uma função realista, servindo para representar a batalha, mas pode desempenhar também o papel fetichista a que nos referimos.

Para não encarar a Górgona pois quem a encarasse petrificaria, Perseu tem necessidade de usar o escudo brilhante para reflexo.

Nesta pátera a única personagem representada no escudo é Perseu e não é visível a Medusa, o que confere a esta peça um carácter quase naif. Outros factores acentuam estas características: Medusa é representada não em alto-relevo, como os restantes personagens, mas gravada, merecendo, mais do que tudo, um tratamento mais esfumado do que o herói espelhado. Isto pode dever-se ao facto de que das três Górgonas apenas uma é mortal, Medusa, e o autor da peça valeu-se desse artifício para tornar mais expressiva a representação mitológica.

Hermes é o mensageiro de Zeus e dos deuses e protector dos viajantes, mercadores e ladrões, tem como atributo o capacete, o bastão e as sandálias aladas. Ao longo do tempo o seu mito foi extensamente ampliado, tornando-se patrono da ginástica, dos diplomatas, da astronomia, da eloquência, para além de ser o guia dos mortos para do reino de Hades.  Com o domínio romano da Grécia Hermes foi assimilado ao deus Mercúrio.



Representação de Mercúrio no mosaico do Planetário de Itálica.
Fotografia a partir do
Conjunto Arqueológico de Itálica.

Hermes pode também usar o capacete de Hades que torna invisível quem o usa. É deste capacete - que também é símbolo da Morte - que Perseu se servirá para poder evadir-se depois da decapitação de Medusa.  Neste mito Hermes desempenha portanto um papel fundamental como auxiliar de Perseu.

A espada é igualmente sua auxiliar pois é com ela que ele mata Medusa e que consegue penetrar as escamas do corpo da Górgona. Segundo a mitologia, a Medusa estaria esperando um filho de Poseidon, deus dos mares, quando é morta pelo herói Perseu,  e diz a lenda que, quando foi morta, o cavalo alado Pégaso e o gigante Crisaor surgiram do seu ventre.

Tanto Hermes como Perseu são representados na Pátera da Lameira Larga em nudez heróica, numa atitude marcadamente helenística, da exaltação dos poderes naturais.

A única peça de vestuário que apresentam é um manto sobre os ombros seguro com fíbulas, sendo mais nítido no caso de Perseu. Este empunha na mão direita a espada emprestada Hades e usa o elmo que o torna invisível. Nos pés tem as asas que, por sua vez, Hermes lhe cedeu.

Em resumo, Perseu torna-se um herói com o auxílio de Atena, com o empréstimo do escudo espelhado, de Hermes, que lhe cedeu sandálias aladas, e ainda de Hades com o elmo de invisibilidade e uma espada.  Na cabeça usa um barrete frígio, símbolo de virilidade.

O saco que muda de tamanho conforme o objecto que transporta e que serve para levar a cabeça de Medusa faz parte dos objectos que Perseu tem que utilisar. É possível que o manto que Perseu tem no dorso e que Hermes ajuda a segurar exerça também a função de saco, se bem que não seja muito clara a sua representação na pátera.

Assim o herói cumpriu sua missão, matando a Górgona, apenas olhando para o seu inofensivo reflexo no escudo (se bem que, como já dissemos não seja visível a Medusa nesta pátera, tratando-se eventualmente de um lapso), evitando assim ser transformado em pedra e oferece a cabeça de Medusa a Atena.

Citando Luz Neira «No obstante, al abordar la mirada en el mito, destaca sobre todas las antes citadas la leyenda de Medusa, como representativa de aquella mirada en sí misma fatal, que es preciso eludir a riesgo de quedar petrifi cado, una hazaña solo conseguida por Perseo, gracias a la inestimable ayuda de los dioses, de Hermes y, en particular, de Atenea. Y a consecuencia, la mirada que se transforma y se convierte en apotropaica. Se trata de una mirada que, de modo extraordinario, al petrifi car simboliza lo marginal, al otro, al mundo ajeno al ordenado mundo griego, y por tanto, sus estratagemas para evitarla el triunfo de la civilización. En cierto modo la leyenda combina la mirada de fatales consecuencias y aspectos de la mirada a través de imágenes refl ejadas, pues si los autores antiguos mencionan el efecto petrifi cante y mortífero de la mirada de Medusa, el episodio relativo a la estratagema urdida para su decapitación incluye elementos propios de las imágenes refl ejadas, al eludir Perseo su mirada, mirando la imagen de Medusa refl ejada en el escudo para atinar en la decapitación»

Salientamos que alguns objectos representados na pátera são de difícil reconhecimento ou caracterização, tal como um de forma rectangular que está aos pés de Atena, mas que pode, contudo, tratar-se de uma tabella para escrever, embora não constituindo atributo das personagens representadas; outro por debaixo dos pés de Hermes, junto ao capacete, tem uma forma que se assemelha a um estilete, ou stylus, como a caracteriza José Cardim Ribeiro, ou talvez possa ser a bainha da espada que Perseu empunha.

As plantas que se encontram debaixo das Górgonas podiam ser dormideiras, pois é enquanto dormem no interior da gruta onde habitam que Perseu mata a Medusa.

O autor desta peça devia conhecer bem o mito grego, pois este tipo de iconografia mitológica foi comum no período imperial, fortemente marcado pela cultura helenóstica na sua fase inicial, embora se trate muito possivelmente de uma obra  provincial. Encontra-se em pinturas, moedas, esculturas, cerâmicas e mosaicos.

Em Conímbriga, embora tratando-se de uma representação mais tardia, datando do último quartel do século II ou inícios do século III, há um mosaico com a mesma iconografia. Inscrita num círculo que serve de moldura a cena mitológica tem, não obstante, algumas diferenças: os elementos narrativos e simbólicos são menos e Perseu, usando o capacete alado, aparece com a cabeça de Medusa já cortada na mão. A espada que leva na mão é tratada quase como uma lança.

De possível origem provincial, tanto esta pátera como o resto das peças do conjunto - sejam as peças metálicas, vítreas ou cerâmicas - são de grande qualidade estilística e perfeito fabrico.

O resto das peças

As restantes peças de prata do conjunto são: um copinho e duas tijelas.


Gravura original do artigo de Santos Rocha de 1909, À direita o disco de prata que já estava "perdido" quando o Estado adquiriu o conjunto em 1973. Fotografia a partir de: 

O tesouro da Lameira Larga (Penamacor) e a villa romana de Torre de Palma (Monforte). Histórias de uma ligação improvável



                                        https://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/11/o-tesouro-da-lameira-larga-penamacor-e.html?                                        showComment=1479066778597#c3402034176730766143







O copinho de prata batida e torneada tem uma forma piriforme, truncado na parte superior, com o bordo ligeiramente espessado e aberto para o exterior.



Copinho em prata.

Assenta sobre um pé anelar convexo pouco elevado e está decorado, junto ao bordo, com duas linhas incisas longitudinais e paralelas.

Das duas tijelas uma é lisa, de paredes circulares sobre um pé anular pouco pronunciado; a outra tem uma forma troncocónica, ligeiramente convexa e possui uma extremidade poligonal de lados concâvos que se prolonga pelos bordos do vaso, recortado em volutas sucessivas, apresentando um recorte de aletas geminadas.

A lucerna pertencente ao Museu de Castelo Branco foi datada da Época Flávia, podendo, no entanto, ampliar-se a sua cronologia até Trajano. Tem uma forma circular e bico alargado com volutas.

No centro está representada uma Vitória sobre o Universo que tem numa das mãos uma palma. Pertencendo à iconografia marcadamente augustana e Alto-imperial, este tipo de representações denuncia a adesão ao novo regime, cuja simbologia se reflecte nos objectos de uso doméstico.

Um jarro de cerâmica comum pertence também ao tesouro. De bojo piriforme, pode datar-se do período alto-imperial. Mede quinze centímetros de altura e inscreve-se na forma 1 - K de Nolen, muito abundantes no Alto Alentejo, a exemplo de um espécime encontrado em Aramenha e estudado por Jeannette Nolen (1985), «Cerâmica Comum de Necrópoles do Alto Alentejo, Fundação da Casa de Bragança, Lisboa.


Jarro cerâmico. MNA.


Um balsamário, muito possivelmente um "frasco de toilette", procedente da evolução mormológica dos espécimes piriformes de proveniência oriental , que Morin-Jean inscreve nas formas 13, 24 e 25 (Morin Jean, 1913: «La Verrerie en Gaule sous l'Empire Romain», Librerie Renourd, Paris), também faz parte do conjunto da Lameira Larga. É de vidro soprado muito claro, de cor ligeiramente verde-azulado. Tem o colo e o bordo partido e encontra-se cintado com uma lâmina de chumbo. Apresenta estrias do processo de sopro e bolhas de ar. Mede 19 cm.

Muito comuns em enterramentos Alto-imperiais, em Portugal existem muitas pelas desta tipologia, citando apenas como exemplo as publicadas por Jorge de Alarcão provenientes de Balsa (1968), de vários museus do Alentejo e do Algarve (Alarcão, 1968, pp: 7-33) e alguns conservados no Museu Nacional de Arqueologia, estudados por este investigador e por Adília Alarcão, como veremos na Bibliografia abaixo (IDEM, 1978, pp: 106-107). Originárias de contextos funerários, podemos considerar como paralelos uma peça pertencente ao Museu da Figueira da Foz - a Necrópole de Fonte Velha de bensafrim (Adília e Jorge de Alacão, 1964, pp: 94-95, Est. IV, 3), outra  da Necrópole de Valdoca, Aljustrel (Idem, 1966, nº 198.5, Est. XIV) - e várias da Necrópole de Santo André (Maria Luísa Ferrer Dias et alii, 1981  p: 143, Est. XII). São datadas entre os séculos I e II d.C.

Santos Rocha refere-se, no seu artigo sobre a Lameira Larga, a um espécime encontrado na Necrópole Velha de Bensafrim, a que atribuímos semelhanças com a peça que estudamos. Contudo, uma publicação numa publicação dedicada aos vidros romanos da Figueira da Foz, faz-se referência a diferentes frascos encontrados na Necrópole de Fonte Velha de Bensafrim: a peça a que já fizemos referência, bem como outra classificada como "frasco de corpo ovóide", à qual não é atribuída nenhuma cronologia (Adília e Jorge de Alarcão, 1964, pp: 112-113, Est. IV.3). Uma vez que este último tem uma decoração de linhas esmeriladas no bojo e no bordo, o que lhe dá características bem diferentes da peça que estudamos, cremos que Santos Rocha se referia ao exemplar número vinte da publicação de Adília e Jorge de Alarcão.

A peça de vidro em forma de jarrito denuncia a influência das formas metálicas altoimperiais. Trata-se de um jarro de tonalidade verdosa que se encontra intacto, e o vidro, tal como sucede com as peças anteriores, é de bom fabrico, não apresentando qualquer irisão. Tem um fundo ligeiramente côncavo e apresenta uma marca de punção. Mede aproximadamente 14 cm de altura e está decorado no bojo com nervuras verticais. A asa, completamente lisa, de secção circular, sendo apenas retorcida para cima e decorada com a impressão de uma matriz no início e no fim.

Com a tipologia deste exemplar documentaram-se, em diferentes épocas e lugares, vários exemplares conservados em inúmeros museus do mundo.

Com a mesma forma deste espécime vítreo da Lameira Larga existem em território português, exemplares cerâmicos, a exemplo do jarro publicado de Santo André (Maria Luísa Ferrer Dias et alii, 1981, p. 143. Est. XII).

Assim, da análise do conjunto de peças deste extraordinário tesouro, cremos poder situá-lo cronologicamente num período compreendido entre finais do século I e meados do século II d.C.




Balsamário em vidro. MNA.



O MITO DE PERSEU:

São comuns as representações do Mito de Perseu, quer na musivária, quer em elementos decorativos ou escultóricos.



«El mosaico portugués de época severiana, procedente de la Casa de los

Surtidores de Conímbriga, haciendo gala de la concisión que caracteriza a
las imágenes representadas en todos sus pavimentos, ofrece una curiosa
versión conjunta de ambas hazañas. El héroe aparece de pie, en posición de tres cuartos en ligero movimiento hacia la izquierda, va desnudo con la clámide que, abrochada en el hombro derecho, cubre el izquierdo y cae a lo largo de la espalda, y lleva alas en la cabeza y no en los pies que aparecen desnudos; en la mano izquierda sostiene la harpé en posición vertical,
mientras avanza la derecha con la cabeza de ¡a Medusa para petrificar
al kethos situado en la parte izquierda; en la zona superior del medallón se
ha figurado un rython sujeto con cintas, instrumento dionisiaco que se repite, asía vez es una siringa, en el mosaico de Sileno sobre asno, procedente de la misma casa»

op. cit. p. 454.«El mito de Perseo en los mosaicos

romanos. Particularidades hispanas»

GUADALUPE LÓPEZ MONTEAGUDO 
Espacio, Tiempo y Forma, Serie il. Historia Antigua, t. 11, 1998, págs. 435-491

Na imagem: Mosaico. Perseu encanta o monstro marinho. Séc. III
Museu Monográfico de Museu Monográfico Conimbriga.



Fotografia a partir de: 



O Mito de Perseu

Adaptado a partir de Alexandre Quinta Nova Teixeira (28/04/2007)


O mito de Perseu começa com a luta de seu avô (Acrísio) com seu irmão gémeo ( Preto), pelo trono de Argos. 
O avô de Perseu vence e cede o trono de Tirinto a Preto.
Do casamento de Acrísio com Eurídece nasce Dánae. Acrísio consulta o oráculo que o alerta que se Dánae concebesse um filho, este mataria o avô. Desta forma Acrísio fica atemorizado e coloca Dánae numa câmara de bronze subterrânea para que esta não tivesse contacto com algum homem.
Mas este recurso não resultou e Dánae engravida, sem que se conheça o progenitor, existindo duas versões: a primeira refere que foi do seu tio Preto; a outra versão diz que Zeus se apaixonou pela princesa e fecundou-a sob chuva de ouro.
Face à situação o rei de Argos expulsa Dánae com seu filho Perseu, pois a suas leis não foram cumpridas, tendo sido ambos colocados numa arca.
Perseu e sua mãe deram à costa na ilha de Sírifos ( ilha dos mortos), cujo rei era Polidectes  (recebedor de muitos).
Em Sírifos, Dánae e Perseu são recolhidos por Dictis ( a rede ), um homem humilde irmão do rei. Este protege Perseu e a sua mãe e Perseu torna-se um homem forte e esbelto. Nesta condição Perseu irá proteger a sua mãe dos assédios sexuais do rei.
O rei organiza um banquete e convida vários súbditos que lhe oferecem cavalos como forma de agradecimento, com exceção de Perseu que, movido por um súbito orgulho, oferece ao rei a cabeça de Medusa. Polidectes aceita a oferta, admitindo a impossilidade da tarefa e, desse modo, poder ficar com Dánae.
Separado da mãe, Perseu contará com o apoio dos espíritos tutelares: Hermes, deus da comunicação e de conhecimentos ocultos, e Atena, que é a deusa da inteligência.
Estes deuses auxiliaram Perseu com objectos que o permitirão enfrentar  a Medusa. Atena dá-lhe um escudo semelhante a um espelho, uma vez que Perseu não poderia olhar frontalmente para a Medusa, pois assim fosse seria petrificado. Hermes cede a Perseu uma espada para com ela cortar a cabeça da Medusa.
Assim Perseu sai do Ocidente para o Oriente, para enfrentar o seu primeiro obstáculo que são as Gréias. Em número de três, só possuíam um único olho e por isto montavam guarda no caminho em turnos, estando duas dormindo e uma vigiando. Somente as Gréias sabiam do caminho para chegar junto das Górgonas, que são três Esteno e Euríole ( imortais ) e Medusa que é mortal.
Desta forma Perseu roubou o olho da Gréia e promete devolvê-lo se elas mostrassem o caminho até às ninfas e às Górgonas. Depois das Gréias, Perseu vai ao encontro das ninfas onde ele obtém o capuz da invisibilidade de Hades, sandálias com asas que permitem voasse e um kíbisis, que é uma sacola para transportar a cabeça da Medusa.
Assim protegido Perseu pode finalmente enfrentar a Medusa.
A Medusa é representada com uma face monstruosa, com os cabelos de onde saiam serpentes, orelhas como as de um boi e a sua língua de fora.
Quando encontra a Medusa, Perseu paira, voando sobre ela e contempla a sua imagem no espelho. Assim o herói evita olhar Medusa de frente e se transformar em pedra. Desta forma Perseu consegue decapitar a cabeça da Medusa, e do seu pescoço brotam o gigante Crisaor e o cavalo alado Pégaso.
Depois de vencer a batalha com a Medusa, Perseu coloca a cabeça da Górgona na kíbisis, o herói parte para Sérifo, auxiliado pela sua sandália alada. 
Passando pela Etiópia, encontrou um país assolado por um flagelo. Isto porque a rainha local, Cassiopéia, julgou-se ser mais bonita que a própria Hera. Como castigo, Posídon enviou um terrível monstro para assolar o país. Consultado pelo oráculo, a resposta foi que somente se a filha do rei, Andrómeda, fosse exposta num rochedo, como sacrifício expiatório.
Neste instante, chegou Perseu , que se apaixonou pela bela vítima. Com isto Perseu fez um pacto com o rei, Cefeu, pedindo sua filha em casamento tão logo vencesse o monstro.
Embora o herói tenha conseguido libertar Andrómeda o pacto não foi cumprido, pois esta estava prometida a casamento a seu tio Fineu.
Ao descobrir a traição Perseu é ameaçado de morte. Com isto Perseu mostra a cabeça de Medusa a Fineu e seus comparsas petrificando-os. Assim Perseu rapta a filha de Cefeu, indo para Sérifo.
Quando o herói chegou a Sérifo com a cabeça da Medusa, Polidectes não acredita que Perseu tivesse cumprido a sua promessa e quer atacá-lo. Perseu, para se defender, usa a cabeça de Medusa e petrifica Polidectes. Com isto o herói resgata sua mãe e vai para Argos.
Quando Perseu regressa a Argos decorriam jogos. Perseu participa da prova de disco e joga o disco tão forte que acaba por matar o seu avô que está na plateia, cumprindo-se assim a profecia do oráculo.





Painel central do Mosaico com representação da cabeça de Medusa. Século II. 
Palazzo Massimo alle Terme, Rome.
Imagem a partir de: https://www.facebook.com/FollowingHadrian/photos/pcb.683946055065008/683946011731679/?type=1&theater




Parte Central de um painel de um mosaico com a cabeça de Medusa. Séculos I-II d.C. Termas de Diocletiano, Roma. Imagem a partir de Following Hadrian. https://www.facebook.com/FollowingHadrian




Mosaico com representação de Medusa, Itálica








BIBLIOGRAFIA

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ALARCÃO, J. de (1968), «Vidros Romanos de Balsa», O Arqueólogo Português, Série III, Vol. IV, Lisboa.

ALARCÃO, J. de (1971), «Mais Algumas Pequenas Colecções de Vidros Romanos», Conimbriga, Vol. X, Universidade de Coimbra.

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https://www.academia.edu/13053058/Alexandre_o_Grande_e_a_Batalha_de_Hidaspes._O_mosaico_do_triclinium_da_Casa_de_Medusa


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[acedido em 19.02.2015].


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 Monumento funerário com representação de cabeça de Medusa. Detalhe. Século  I d.C.
Museu d'història de la ciutatDetall». Fotografia a partir de: http://www.flickr.com/photos/pilar_torres/6345858426/in/photostream/[/caption]

Ver ainda:

http://followinghadrian.com/2013/07/29/picture-of-the-day-head-of-medusa-bronze-fitting-of-the-nemi-ships-built-by-caligula-at-lake-nemi/

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